Nos Acordes da Memória, um Voo Rumo à Liberdade – As Coisas Simples da Vida
Liberdade e lembranças na coluna de hoje de Omar Dimbarre.

O dia estava claro, com os raios do sol cruzando o azul celeste que tingia o céu, salpicado pelo branco de poucas nuvens que, nascidas sobre a imensidão do oceano e embaladas pelo vento, aos poucos se dissipavam enquanto deslizavam sobre a cidade de São José, em Santa Catarina.
Era um sábado de primavera do ano de 1989, e eu estava no auge da minha juventude, cheio de energia e querendo aproveitar cada instante da vida como se fosse o último. Ao meu lado, estava meu grande amigo, irmão de alma, César Bernardi.
A década de 80 foi uma época de aventuras, em que muitos deixavam sua terra natal para ir morar e curtir o litoral catarinense. Eu e o César havíamos embarcado nessa jornada no último dia do ano de 1988.
E lá estávamos nós, curtindo o fim de semana, tomando nossa cerveja, envolvendo o tempo com nossos bate-papos e com nossas risadas. No chão da sala, uma caixa de papelão repleta de discos de vinil – os nossos discos. Na parede, quadros do Led Zeppelin e uma tela bastante popular no final dos anos 80, com uma figura de um soldado ferido na Guerra do Vietnã deitado no colo de outro soldado e a pergunta 'Why?' escrita abaixo. Com o sucesso estrondoso do filme "Platoon", a Guerra do Vietnã havia voltado à pauta. E, nos nossos 20 e poucos anos, aquela reprodução representava as várias indagações sobre dores e sofrimentos que permeavam nosso imaginário. Às vezes, eu costumava parar e ficar olhando fixamente para a imagem, como se tentasse buscar uma resposta não somente para a guerra, mas para todas as injustiças que eu não compreendia.
A música fazia parte de nossas vidas, do nosso dia a dia. Era fundamental para a construção de nossas histórias; tão essencial quanto respirar.
No toca-discos, se revezavam Pink Floyd, Led Zeppelin, Bob Dylan, Neil Young, Deep Purple, Jethro Tull e tantos outros que marcaram nossas histórias. Naquele momento, o bolachão da vez era o álbum More, da banda inglesa Pink Floyd, lançado no emblemático ano de 1969.
No mesmo ano da estreia da banda Led Zeppelin, a preferida do César — ou Cesinha, como chamávamos — do Festival de Woodstock e do ápice do movimento hippie.
Os acordes pesados de “The Nile Song” acabavam de se despedir, dando lugar à psicodélica “Cymbaline”, que criava uma sensação onírica no ambiente quando um avião começou a rasgar o infinito celeste.
Aquele instante foi envolvido pelas nossas fantasias e nossos devaneios e viajamos junto com o avião, rumo ao desconhecido. Nos libertamos das amarras que prendiam e sufocavam nossos sonhos.
Olhei para a face do César, segurando seu copo de cerveja e esboçando um sorriso no rosto. Foi mágico. Éramos alquimistas que acabavam de descobrir a fórmula para transcender a realidade, transformando o impossível em possível.
Aquele avião cruzando os céus, no fundo, era uma metáfora da liberdade que idealizávamos. Em nossas conversas, viajávamos juntos em devaneios e ideais: desbravar as Montanhas Rochosas, no Canadá, onde havíamos até estabelecido que moraríamos em cabanas distintas, mas próximos para continuarmos curtindo juntos, tendo como pano de fundo, a gaitinha de boca tocada pelo canadense Neil Young, um dos nossos músicos preferidos. Ou talvez estivéssemos embarcando para algum pub londrino na década de 60, para vivenciar o nascimento de nossas bandas preferidas. Ou quem sabe, simplesmente, representasse uma viagem para o nosso incerto e enigmático futuro.
A passagem do César por esse mundo foi efêmera. No dia 28 de janeiro de 1993, às 4 horas da madrugada, aos 28 anos, sua alma se desvencilhou de seu corpo e ele partiu. Talvez, para alçar um voo mais alto, rumo às estrelas, que ele tanto amava. Partiu fisicamente, mas seu jeito de viver a vida, sua sede de conhecimento, sua bondade e os momentos que dividimos juntos permanecem vivos, eternizados em minhas memórias.
Hoje, cada vez que vejo um avião cruzando os céus, revivo aquele instante, e os acordes de Cymbaline, esteja onde eu estiver, tocam em minha mente, fazendo-me retornar no tempo, para aquele fascinante dia de 1989. Aquele minuto ficou imortalizado em minhas lembranças, assim como a nossa amizade jamais morreu.

Omar Dimbarre é rodutor cultural, colecionador de cartazes originais de cinema, minerais e fragmentos de meteoritos. É apaixonado por artes — especialmente música e cinema —, fascinado pela natureza e por histórias populares, desenvolvendo projetos que visam recuperá-las.
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